As metáforas para explicar o conceito de superapp são muitas – segundo o New York Times, um superapp é um canivete suíço digital – mas, de forma bastante simples, podemos dizer que é um aplicativo que, sozinho, engloba funções de centenas ou milhares de outros de aplicativos (os miniapps), e nele tarefas de um dia inteiro, como chamar um táxi, pagar impostos, agendar uma consulta e reservar um restaurante, são resolvidas pelo celular e com uma única senha. Parece algo insustentável ou que exija uma assinatura caríssima, mas não é. Como há muitos serviços oferecidos dentro de uma mesma plataforma, um acaba subsidiando o outro, o que não somente gera lucro para a plataforma, mas permite que alguns serviços tenham taxas cada vez mais reduzidas.

Mas não basta ser uma plataforma multifuncional ou com milhões de usuários, os superapps têm código aberto e qualquer um pode alocar seu miniapp, tal como criamos perfis no Facebook, seja uma pessoa física vendendo chás, uma corporação oferecendo serviços de streaming, ou uma entidade governamental arrecadando de impostos. Todos utilizam as funcionalidades pagamento do superapp, como se fosse uma moeda única.

Segundo a Pew Research Center, cada usuário brasileiro de smartphone tem, em média, 70 a 80 aplicativos, e quase metade sequer é utilizado. Mas para além de um contexto de troca do excesso de aplicativos inúteis pela otimização do espaço de armazenamento do smartphone, a facilidade de pagamento e a possibilidade de realizar outras transações financeiras de forma segura e descomplicada parece ser o grande atrativo dos superapps.

E há um aspecto social extremamente importante no desenvolvimento de uma tecnologia simplificada, visto que o brasileiro, por exemplo, prefere acessar serviços pelo celular, mas a maioria tem aparelhos simples e com memória limitada, sem contar com o grande número de pessoas com pouca instrução tecnológica, que enfrentam dificuldades no uso de tecnologias mais complexas e na conjugação do uso de vários aplicativos para realização de uma única transação. Uma plataforma que exija menor desempenho do smartphone e com o uso descomplicado de suas funções permitirá que um maior número de usuários desfrute das mesmas vantagens tecnológicas. É mais uma concretização no presente da quarta geração de direitos humanos – acesso universal ao avanço tecnológico – pois estima-se que até 2027 metade da população global utilizará superapps.

A experiência chinesa é uma lição sobre a rapidez e a profundidade com que um superapp pode transformar uma sociedade. O primeiro superapp, o WeChat, surgiu em 2011 e a ideia inicial era a troca de mensagens em substituição às redes sociais em um país onde os cidadãos são monitorados e não é possível escolher o que acessar. Após as mensagens de texto, os chineses passaram a usar o marketplace e a ferramenta de pagamento do WeChat, e o aplicativo se tornou um gigante, com mais de 1 milhão de miniapps, inclusive de serviços públicos (como licenças e divórcio), com acesso diário de mais de 1,25 bilhão de pessoas e com um impacto social e econômico tão grande que o dinheiro de papel e o cartão de crédito desapareceram: a China se tornou a primeira sociedade cashless do planeta e isso se deve ao WeChat.

E esse que já é o software mais utilizado da história, conta com apenas um concorrente na China, de porte bem menor, mas ainda gigantesco, o AliPay, do grupo Alibaba, e a Ásia ainda conta com o Gojek na Indonésia (que começou como app de carona) e Paytm na Índia (que começou com cargas para celular pré-pago), mas com o sucesso do WeChat, o mercado ocidental voltou os olhos para este novo grande negócio, e gigantes como a Microsoft e o bilionário Elon Musk, mesmo com pouca participação até então no mercado mobile, declararam que irão desenvolver tecnologia para superapps ainda em 2023.

O Brasil ainda não desenvolveu nenhum superapp, apesar de líderes do varejo e do delivery já se intitularem como tal. Nem mesmo os EUA têm o seu superapp, pois as big techs, como Google e Apple, investem bilhões para evitar seu surgimento e manter a hegemonia de mercado, com apoio de um Poder Executivo e de um Congresso cuja protetiva configuração atual cria severa barreira à sua criação.

Não é incongruente que diante da concentração de informações e dados, razão primeira do sucesso e da tolerância e posterior apoio do vigilante governo chinês ao WeChat, as sociedades liberais se questionem sobre eventuais inconveniências e riscos à privacidade dos cidadãos. Porém, a realidade da sociedade ocidental nos permitirá importar o design do WeChat, mas não teremos superapps iguais aos asiáticos. Em mercados como o brasileiro, a tendência é a rápida descentralização dos empreendedores e surgimento de aplicativos adaptados às nossas demandas e ao nosso modelo social.

Além disso, o Brasil não somente conta com avançada tradição regulatória, como também com vigilantes representantes do Poder Público e legislação de prevenção e repreensão à formação de monopólios, de proteção aos dados dos usuários, e forte legislação protetiva dos consumidores, administrados e contribuintes, que garantirão a responsabilização dos fornecedores e do Poder Público dentro de um superapp. Um exemplo de nossa tradição protetiva e regulatória frente à tecnologia é que ainda em junho o Brasil apresentará um projeto de Resolução no Conselho de Direitos Humanos da ONU para regulamentação da inteligência artificial, apoiado por Dinamarca, Coreia do Sul, e outras democracias.

Aqui saem na frente as plataformas do sistema bancário, uma vez que já contam com larga experiência em segurança de transações e milhões de usuários cadastrados, bastando oferecer cada vez mais funções e facilidade de navegação – pois quanto melhor a experiência, mais fiel se torna o cliente.

Neste cenário, a única carência é de informação (haja vista que quase nada foi produzido em português, pela mídia ou academia, sobre tão relevante tema) e educação para o consumo e para a tecnologia para que o brasileiro esteja preparado para opinar conscientemente sobre riscos e vantagens de sua implementação. A atividade regulatória do Poder Público isolada da participação popular esclarecida manterá a marginalização tecnológica, com exclusão do direito à sua fruição plena.

Além disso, estamos diante de uma virada de chave histórica: pela primeira vez o oriente lança – ou melhor, impõe – a tendência tecnológica das próximas décadas ao ocidente. Mudamos o vetor global com o crescimento inimaginável da internet chinesa, onde o molde social e político propiciou uma revolução digital e financeira. Superapps parecem inevitáveis, e no Brasil será benvinda uma revolução que torne o uso da tecnologia mais justo, consciente e sustentável.

FONTES

  1. Aplicativos de bancos evoluem e ganham novas funções”. Disponível em: https://febrabantech.febraban.org.br/temas/banco-digital/aplicativos-de-bancos-evoluem-e-ganham-novas-funces.
  2. Engatinhando no Brasil, superapps se empenham em conquistar brasileiros” Disponível em https://febrabantech.febraban.org.br/temas/meios-de-pagamento/engatinhando-no-brasil-superapps-se-empenham-em-conquistar-brasileiros.
  3. Financial Times. “The real reason most super apps are not super great”. Disponível em https://www.ft.com/content/9ab775cc-d596-4e0b-aa3e-34e9111ec431.
  4. Forbes Magazine. “The Shift To Super Apps: Will The Latest Trend Of Tech Giants Make Consumers Stay Online For Longer?”. Disponível em https://www.forbes.com/sites/columbiabusinessschool/2022/03/08/the-shift-to-super-apps-will-the-latest-trend-of-tech-giants-make-consumers-stay-online-for-longer/.
  5. Super apps: o que são e como funciona a nova tecnologia”. Disponível em https://www.gartner.com.br/pt-br/artigos/o-que-e-um-superapp.
  6. Harvard Business Review. “Are Super-Apps Coming to the U.S. Market?”. Disponível em https://hbr.org/2023/04/are-super-apps-coming-to-the-u-s-market.
  7. New York Magazine. “Super-Apps Are Inevitable – Get ready for the first $10 trillion tech company”. Disponível em: https://nymag.com/intelligencer/2021/11/facebook-metaverse-super-apps.html.
  8. New York Times. “China Internet is Flowering – And It Might Be Our Future”. Disponível em https://www.nytimes.com/interactive/2019/11/13/magazine/internet-china-wechat.html.
  9. Brazil is the 5th Country in Smartphone Usage” Disponível em: https://www.pagbrasil.com/insights/smartphone-usage-in-brazil/.

 

Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/superapps-a-tecnologia-oriental-e-os-direitos-humanos/

Autor: Carolina Vieira Bitante • email: carolina.bitante@ernestoborges.com.br

SUPERAPPS: A TECNOLOGIA ORIENTAL E OS DIREITOS HUMANOS

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